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Ensaios / Críticas

[Estudos Pasolinianos - Depto FTC da EBA]

09/04/2004

PASOLINI E O TERCEIRO MUNDO - PARTE I


Introdução

Nascido em 1922 na cidade de Bolonha na Itália, Pasolini viveu sua infância e parte da adolescência sob o jugo do regime fascista. Conheceu intimamente a tirania do regime na pele do próprio pai, militar decadente e autoritário, com o qual se desentendeu não uma única vez. Por outro lado tinha grande respeito e admiração pela mãe de origem camponesa, prova disso são os poemas em dialeto friulano que escreve com 17 anos louvando o modo de vida campesino. Apesar de ser o primeiro livro de Pasolini, "Poesie a Casarsa" já traz marcas da rebeldia que caracteriza toda sua obra. Ao escrever, em dialeto, sobre um estilo de vida minoritário o poeta faz frente ao interesse fascista de unificação total da Itália, onde as minorias devem ser sumariamente silenciadas.
Mais tarde, em 1943, após a queda do regime, Pasolini esteve em contato direto com o campo, no período em que viveu com a mãe e o irmão Guido em Casarsa della Delizia. Chegou a lutar ao lado dos camponeses contra grandes latifundiários da região, numa relação que segundo o próprio Pasolini foi responsável por sua inclinação "intuitiva" ao marxismo. O contato com o Friuli, além de dotar o poeta da consciência da "luta de classes", deu-lhe a noção objetiva da existência dessa classe, que de tão afeita à tradição, constitui, no ideário de Pasolini, um lugar fechado, protegido das rápidas transformações da história. É esse mundo "pré-histórico", arcaico e religioso que oferece suporte ideológico a seus primeiros romances e filmes: o "Terceiro Mundo" (países chamados pela geopolítica atual de países em vias de desenvolvimento).

O Terceiro Mundo dentro do Primeiro

Pasolini inscreve-se no Partido Comunista Italiano em 1947, e é expulso dois anos mais tarde, acusado de desvio ideológico: um padre da região, quebrando o segredo confessional, o havia denunciado por assédio sexual a um jovem. "Apesar de vocês [afirma Pasolini sem se resignar] continuo e continuarei sendo comunista no sentido mais autêntico da palavra" (PASOLINI citado por LAHUD, 1993, p. 63). E o foi até o fim da vida. É bem verdade que de uma maneira bastante pessoal, não é à toa que o marxista que mais o influenciou foi o italiano Antonio Gramsci, conhecido por sua interpretação também muito pessoal dos escritos de Marx e Engels (KONDER, Leandro. "Gramsci e o Brasil", in: www.gramsci.org, ativo em 31 de agosto de 2004). De Gramsci, Pasolini herda o conceito de ideologia e o exemplo de intelectual envolvido de forma direta com as classes dominadas.
Após sua expulsão do PCI, Pasolini vai com a mãe para Roma onde vive em contato direto com os subproletários (no vocabulário marxista, classe social à margem do mundo do trabalho e que vive de atividades marginais como roubo e prostituição) das borgate (favelas nas periferias de Roma). Ali, na periferia da cidade, ganhando a vida como professor, depois como jornalista e roteirista de cinema, assumirá exatamente papel descrito por Gramsci, na chamada fase "nacional popular" de sua obra, com os romances O sonho de uma coisa, Meninos da vida e Una vita violenta, nos quais erigia como parâmetro de autenticidade o camponês friulano e o subproletariado romano. É interessante ressaltar que, nesse período, a cidade de Roma ainda era pré-industrial e, ao contrário do que acontecia no norte industrializado, seus habitantes viviam numa condição de pobreza material e moral que a aproximava da África ou da América Latina. Esse fato não passa despercebido aos olhos do poeta e é sobre ele que se apóia a escolha de Pasolini pelo subproletariado.
Tal como no Friuli, o "Terceiro Mundo" representa para o cineasta um lugar fechado, protegido das mudanças mais bruscas da história, como a industrialização crescente que ocorre em todo o mundo. Os países subdesenvolvidos estão à margem desse processo e, portanto, mais próximos de um momento da humanidade mais essencial, de um sentimento de religiosidade ainda intocado. O subproletariado representa, na obra de Pasolini, uma espécie de metáfora do Terceiro Mundo ou ainda se quisermos uma porção de Terceiro Mundo dentro do Primeiro, cuja simples presença constitui uma resistência à industrialização indiscriminada e ao "neo capitalismo".

... Não é possível julgar ou representar o subproletariado se não comparando ou compreendendo-o dentro do contexto geral do Terceiro Mundo (declaração de Pasolini no documentário Pasolini, l’enragé).

A sensualidade desregrada, o espírito carregado de superstições pagãs, a moral, toda assentada na honra: são essas características "pré-históricas" do subproletariado que Pasolini julga capazes de resistir ao racionalismo pragmático neocapitalista:

O subproletariado (...) é apenas aparentemente contemporâneo da nossa história. As características do subproletariado são pré-históricas, são definitivamente pré-cristãs; o mundo moral de um subproletário não conhece o cristianismo. Os meus personagens, por exemplo, não sabem o que é o amor no sentido cristão, sua moral é a moral típica de todo o sul da Itália, fundada sobre a honra. A filosofia destes personagens, se bem que reduzida a migalhas, aos ínfimos termos, é uma filosofia do tipo estoico-epicúreo, que sobreviveu ao mundo romano e atravessou incólume a dominação bizantina, papal e burbônica (...).

Em sua origem remota, o poeta cineasta identifica um sentimento de religiosidade radicalmente oposto ao consumismo e é esse "sentimento do sagrado" que defenderá em boa parte de sua carreira. Contudo, o sagrado para Pasolini nada tem a ver com o eclesiástico, diz respeito a um sentimento de submissão a uma ordem maior, que está no cerne da construção da Igreja, mas que de qualquer forma não pertence a ela. O sagrado, para ele, é o reconhecimento da existência não de Deus, que o cineasta como marxista ignora, mas o reconhecimento do divino, do sobrenatural.

(...) eu não acredito que Cristo seja filho de Deus, por que não sou crente, pelo menos conscientemente. Mas acredito que Cristo seja divino: isto é, creio que nele a humanidade é uma coisa tão elevada, tão rigorosa e ideal que ultrapassa os termos comuns de humanidade (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, Ciclo Pasolini anos 60, p. 72),

Tal declaração, feita por ocasião do lançamento de Evangelho segundo São Mateus (Il Vangelo secondo Matteo, 1964) nos ajuda a compreender um recurso recorrente nos filmes de Pasolini que é sacralizar ao máximo possível o elemento terceiro-mundista. E se em Evangelho segundo São Mateus, Cristo é além de divino, humano, em filmes como Desajuste social (Accattone,1961) ou A ricota (La Ricotta, 1963), o elemento humano ganha aspectos sacros.

Sacralidade Técnica

Tal como em boa parte dos filmes neo-realistas (a comparação deve-se ao fato de que também na obra neo-realista é possível apreender o ideal "nacional popular"), Pasolini utilizava atores não profissionais e o objetivo principal dessa operação é que aqueles homens e mulheres do povo representassem não um papel, mas que mostrassem a si mesmos, seus rostos e corpos de moradores do subúrbio. É interessante perceber a especificidade de Pasolini, calcada principalmente na valorização do religioso, ou seja, no sentimento do sagrado. Ao contrário do que acontece no neo-realismo, onde é clara uma intenção de não estetização da realidade, numa representação naturalista e sóbria do real, Pasolini age de forma muito mais expressiva, envolvendo a realidade periférica em uma aura épica onde os pequenos e cotidianos acontecimentos ganham os contornos de uma epopéia.

Quando faço um filme, eu me coloco em estado de fascinação diante de um objeto, de uma coisa, de um rosto, de um olhar, de uma paisagem, como se se tratasse de um engenho onde o sagrado estivesse na iminência de explodir (AMOROSO, Maria Betânia, Pier Paolo Pasolini, p. 44).

Ao realçar da realidade seus traços épicos e míticos, ao mitificar a vida subproletária, Pasolini ultrapassa a esfera da denúncia social, alcançando o campo da moral onde "a pobreza torna-se a verdadeira riqueza, e onde a corrupção aparece como uma forma superior de pureza" (PASOLINI citado por LAHUD, 1993, p. 64, 65). É através de uma simplificação da técnica cinematográfica que Pasolini consegue reproduzir no plano do cinema seu amor pelo Terceiro Mundo. A "sacralidade técnica", como ele se referia à sua forma particular de filmar, tinha como objetivo traduzir para o espectador toda nostalgia do mítico e do religioso. Tal recurso estilístico denota, porém, uma certa crueza da técnica. Claro que o que está em voga, particularmente para Pasolini, é ainda a tradição neo-realista onde a técnica cinematográfica é, senão subvertida, de certa forma superada em detrimento de uma maior expressividade da realidade que se quer mostrar. Contudo, o que principalmente serve de suporte à sacralidade técnica é certamente o gosto do cineasta pela pintura do Trecento e Quattrocento italianos:

Aquilo que tenho na cabeça como visão , como campo visível, são os afrescos de Masaccio e de Giotto. E não consigo conceber imagens, paisagens, composições de figuras, fora desta minha paixão inicial do século XIV em que o homem é o centro de cada perspectiva (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN. Ciclo Pasolini anos 60, p. 57).

Portanto, a frontalidade dos enquadramentos e as lentas panorâmicas denotam, assim como na obra figurativa pré-renascentista, um interesse em colocar o subproletário no cerne da obra. O uso expressivo da música reforça esse interesse. No filme Desajuste social o personagem central é um subproletário que vive de pequenos furtos nos arredores de Roma, um desajustado pela ótica corrente. No entanto, é ele o herói trágico do filme. Pasolini reconhece que o drama de Accattone é o da maioria dos italianos do subúrbio, para os quais a morte é o único protesto possível. Ele sobrepõe ao momento final de Accattone o coro da Paixão segundo São Mateus, de Bach, aproximando a morte do marginal ao próprio martírio de Cristo, numa clara intenção de elevar aquela morte da realidade corriqueira. Faz isso por enxergar que o sagrado não está onde a burguesia o quer ver, mas onde ninguém o percebe, no martírio de uma condição miserável.
A ricota (La Ricotta, 1962), por exemplo, transcorre num set de filmagens onde se realiza uma encenação da Paixão de Cristo. Nesse filme, Pasolini retira toda a divindade da Crucificação feita no ‘filme dentro do filme’ e empresta-a a Stracci, um dos figurantes, miserável permanentemente faminto, que repassa toda a comida que ganha durante as filmagens à sua família. Só se fantasiando de mulher ele consegue uma segunda remessa que sequer consegue comer, pois o cãozinho de uma das atrizes é mais rápido que ele. Revoltado, ele seqüestra e vende o cão, e com o dinheiro compra uma ricota, que devora avidamente sob o escárnio de todos. Stracci, que fazia o papel de bom ladrão, morre de indigestão na cruz, sob os olhares não muito surpresos dos outros atores e figurantes. A tentativa de sacralizar o homem do povo é aqui mais clara e também alegórica. Ao eleger como herói simbólico do filme o pobre Stracci com sua fome leonina Pasolini joga para segundo plano a montagem artificiosa que se faz da Crucificação e brinca com essa inversão, colocando os atores da montagem a dançar um twist nos intervalos da filmagem.
Em Mamma Roma (idem, 1962), mais uma vez Pasolini se servirá da tragédia para mitificar o "herói simbólico do Terceiro Mundo" nesse caso, Ettore, um jovem criado no campo e trazido por sua mãe para o convívio da cidade, onde será por ela submetido à moral pequeno-burguesa, que, na forma de ver de Mamma Roma constitui a verdadeira vida, o chamado mundo do bem ou do bem estar pequeno-burguês. Arruma-lhe um emprego de garçom o que em última instância não o redime, pelo contrário ele vai purgar após descobrir que a mãe é prostituta. Abandona, então, o emprego de garçom e passa a praticar pequenos furtos, até ser preso e acabar morrendo. Ettore morre tal como Stracci ou Accattone. O diretor reforça esse aspecto trágico filmando a morte de Ettore como uma citação ao Cristo Morto de Mantegna, obra do século XIV. Pasolini destaca a tragédia advinda do flerte entre a vida subproletária e a moral pequeno-burguesa. Essa afirmação nasce mais uma vez de sua afirmação do subproletariado como classe portadora de algo autêntico e sagrado. Contudo, ao contrário do que acontece no filme, essa classe estava, na realidade, cada vez mais implicada na sociedade de consumo, tanto pela industrialização total da Itália, marcada pela mudança do centro de poder de Florença e Roma, para Milão e Turim , quanto pelo advento dos meios de comunicação de massa que difundiam os ideais da nova sociedade. Mais tarde ele irá se referir ao fenômeno como "genocídio", a destruição sumária de toda a cultura diversificada, humanista da Itália de até então em detrimento de uma de massa. O desaparecimento do homem simples e religioso ao qual consagrou seus primeiros filmes e sua substituição pelo homem massa, obcecado por consumir fará com que Pasolini abandone a linguagem e o projeto gramsciano e passe a procurar efetivamente nos países do Terceiro Mundo o sentimento de religiosidade que pouco a pouco desaparecia, pelo menos no Primeiro Mundo.

(FIM DA PRIMEIRA PARTE)


Eduardo Ferreira dos Santos - euduardosantos@hotmail.com



09/04/2004 a 09/30/2004. Este Mural é de responsabilidade de:
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